Entre Dostoievski e Raskólnikov

Bob Kowalski
5 min readJun 17, 2024

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Existe uma lenda de que há dois mil anos, viveu um homem cuja influência ecoou por milênios. Este homem se considerava tão bom, tão melhor que os outros que se julgou capaz de ensinar a todos. Nascido em circunstâncias humildes, depressa ganhou notoriedade por sua eloquência e profundidade moral. Ele percorria vilas e cidades atraindo multidões com suas palavras. Suas lições, focadas na moralidade e compaixão, inspiravam muitos a repensar suas vidas e ações. Esse ser extraordinário possuía uma visão exata sobre como a sociedade deveria funcionar, ele acreditava na pureza das instituições supostamente sagradas, considerando-as como refúgios de moralidade e espiritualidade. Para ele, qualquer forma de corrupção ou profanação desses locais era intolerável. Sua paixão por essas ideias o levou a um dos episódios mais controversos e significativos de sua vida: a expulsão violenta dos vendedores do templo.

O templo havia se transformado num mercado ruidoso, cheio de comerciantes e cambistas. Tomado por uma raiva extrema, ele entrou no templo e começou a expulsar os vendedores com uma intensidade feroz. Derrubou as mesas dos cambistas e liberou os animais destinados à venda, espalhando moedas pelo chão e criando um tumulto. Sua ação, embora violenta, era impulsionada por um profundo senso de moralidade. Ele via o comércio no templo como uma profanação do sagrado, uma ofensa à moralidade que ele tanto prezava e pregava.

Esta cena chocou muitas pessoas, uma cena tão brutal para este homem normalmente calmo e compassivo deixou uma memória indelével para todos os que testemunharam o incidente. Para os seus seguidores, as suas ações não foram apenas um ato de rebelião, mas um poderoso lembrete da importância de manter os espaços sagrados puros e intactos. Para os comerciantes e autoridades, isto é uma afronta directa à ordem estabelecida e ao status quo.

Este homem extraordinário desafiou as normas do seu tempo através dos seus ensinamentos e ações, buscando uma sociedade mais justa e moral. A sua coragem para enfrentar a corrupção, mesmo de forma violenta, reflete a sua profunda crença de que a moralidade deve triunfar sobre o lucro e a ganância. A sua vida e as suas lições continuam a ser uma fonte de inspiração e reflexão, ecoando através dos séculos como um testemunho do poder da ação moral e justa.

Noutra história, obviamente diferente, temos o romance Crime e Castigo, de Fyodor Dostoiévski, que conta a história de Rodion Raskolnikov, que era um jovem e pobre estudante de São Petersburgo que está tão convencido de suas teorias sobre pessoas extraordinárias que mata um velho prestamista na crença de que está acima da moralidade comum. Porém, após o crime, Raskolnikov ficou atolado em culpa e remorso, o que o levou a um intenso conflito interno. Através do processo de dor e redenção, o romance explora temas profundos como a natureza da justiça, moralidade, alienação e a possibilidade de redenção espiritual. O personagem principal do livro tem uma teoria sobre os tipos humanos.

Humanos Ordinários: Segundo Raskólnikov, estes são aqueles que seguem as leis e normas sociais sem questionar. Eles vivem vidas comuns, trabalham, constituem família e não aspiram a mudar a sociedade ou desafiar suas regras.

Humanos Extraordinários: Estes são indivíduos que, de acordo com Raskólnikov, têm o direito de transgredir leis e normas se isso levar a um bem maior. Eles são líderes, visionários, como Napoleão, que ele frequentemente menciona. Eles têm a capacidade de mudar a história e a sociedade através de suas ações extraordinárias e muitas vezes radicais.

No caso de Raskólnikov ele claramente não era alguém ordinário e nem tampouco extra ordinário. Então proponho outra categorização, “Humanos Intermediários”. Nesta categoria intermediária, encaixaríamos pessoas como Raskólnikov, que estão insatisfeitas com a sua condição ordinária e desejam transcender essa condição, mas ainda não possuem a clareza, motivação ou a força de vontade para se tornarem extraordinários de verdade. Eles são ambivalentes, muitas vezes lutando com suas próprias inseguranças, morais e éticas. No caso de Raskólnikov, sua tentativa de cometer o crime não é para o bem maior, mas para provar a si mesmo que é capaz de transcender a moralidade comum. Ele deseja ser extraordinário, mas suas ações e motivações são absolutamente confusas e contraditórias. Ele é um “homem intermediário”, preso entre a ambição de transcender a moralidade comum e a culpa que o consome após o crime.

A categoria dos homens intermediários reflete a luta interna e a ambiguidade moral que muitos podem experimentar. Raskólnikov, ao tentar se provar como extraordinário, revela sua própria fragilidade. Ele não tem uma causa nobre e nem uma visão clara que justifique seu crime, o que o coloca exatamente no meio-termo que você descreve.

Raskólnikov é um personagem que busca significado e propósito num mundo que ele percebe como injusto e sem sentido. Sua tentativa de cometer um crime “extraordinário” é uma tentativa desesperada de afirmar sua própria existência e relevância. No entanto, sua incapacidade de seguir adiante sem remorso ou culpa revela que ele ainda está preso às convenções e à moralidade dos homens ordinários.

Assim, a ideia de um homem intermediário é coerente com a caracterização de Raskólnikov. Ele é um exemplo de como a busca por transcendência e significado pode levar a uma espiral de conflito interno e moral, deixando a pessoa presa entre o desejo de ser mais e a realidade de suas limitações humanas.

Dostoiévski era cristão, e Jesus de Nazaré, segundo a maioria, não era um homem comum, sendo muitas vezes visto como intermediário ou extraordinário. Em “Crime e Castigo”, Dostoiévski critica indiretamente a figura de Jesus ao desafiar a ideia de que a humanidade necessita de líderes e liderados para manter a ordem. Jesus, sendo um líder, exemplifica a necessidade de liderança para a coesão social; sem ela, prevaleceria o caos. A obra de Dostoiévski inconscientemente questiona essa premissa, sugerindo uma ausência de uma estrutura de liderança clara, o que pode levar a conflitos internos e desordem.

No caso de Jesus a expulsão dos vendilhões do templo poderá até parecer um ato nobre devido analises superficiais e simplificações. Alguns interpretam como um ato de zelo religioso, purificando o templo da profanação comercial, bem como uma crítica à hipocrisia das autoridades religiosas. Independente da interpretação, a ação demonstra a rejeição de Jesus à exploração e à deturpação da fé. A mesma ação seria punida como um crime em vários países: “invadir templos e interromper cultos é crime punido com prisão.”

Engraçado que embora as ações de Raskólnikov sejam sempre associadas ao niilismo, mas as de Jesus, não são, isso é injusto. Tanto o ato de matar quanto o de atacar pessoas um templo são ações violentas, há claro um grau de violência diferente, mas que se pode equiparar de certo modo na categoria de violência niilista, ambos os personagens Jesus e Raskólnikov sofrem de certa falta de significado em suas ações. Jesus pregou antes o amor ao próximo, mas depois cometeu um ato de ódio e violência, o que em certa medida anula o que ele disse anteriormente, Jesus é semelhante a Raskólnikov em certa medida também o é, pois, se arrependeu da ação de ter matado uma velha burguesa.

Discurso contraditório e alto grau de violência são associadas ao niilismo. Ambos os personagens sofreram punições por suas ações, mas sabemos que Jesus não é associado ao niilismo devido á razões religiosas. Parece que ter poderes mágicos é estar acima das leis.

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